A emergência do Brasil no cenário mundial: como ficam os lácteos?

A crise econômica mundial parece ter tido um efeito positivo para o Brasil. Mostrou a solidez do sistema bancário e reforçou a importância do sistema de suporte social governamental para manter viva a economia em épocas complicadas (Bolsa-Família + aumento real anual do salário mínimo desde 1996).

Dados compilados pelo Bradesco e apresentados no Seminário BM&F Bovespa, sobre Perspectivas para o Agronegócio em 2009 e 2010 indicam que o Brasil deverá estar entre os 10 países de maior crescimento econômico nestes dois anos. Para ser mais preciso, o Brasil deverá estar entre os países com menor queda no PIB, mas de qualquer forma está no pelotão da frente no quesito resistência à crise.

Segundo Octávio de Barros, diretor de estudos e pesquisas econômicas do banco, o Brasil já não disputa recursos: é visto como melhor alternativa para o longo prazo, junto da China, considerando risco e retorno.

É interessante que essa nova realidade (considerando que de fato são novos tempos) comprova o que dois estudos anteriores apontavam: o relatório da CIA (de 2004), sobre o Mundo em 2020, que colocava o país como um importante pivô regional, amplamente integrado com as principais economias mundiais; e o estudo do Goldman Sachs, de 2003, colocando o Brasil como a quinta maior economia do mundo (hoje, somos a décima), cunhando definitivamente o termo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), para definir as novas economias mundiais que polarizarão com os Estados Unidos, Europa e Japão.

O Brasil, logicamente, não é o único (nem o principal) país emergente que desfruta dessa posição de destaque. Na verdade, desde meados da década de 90, o PIB dos países emergentes vem crescendo bem mais do que o PIB dos países desenvolvidos. O gráfico abaixo, do FMI, mostra isso. Em vermelho, a variação do PIB das economias avançadas; em azul, das emergentes; em cinza, a média mundial.

Nesse novo contexto, o Brasil começa a se destacar. De acordo com Barros, a apreciação do real em 2009 reflete a percepção do mercado de que o Brasil tem trazido boas notícias para a economia mundial. Mesmo com a apreciação da moeda em um cenário de preços mais baixos para as commodities, o Bradesco prevê saldo positivo de mais de US$ 23 bilhões em 2009.

Tudo isso parece muito bom, e é. Mostra que o Brasil vem sendo visto de outra forma pelo capital. Mas há outro lado a se considerar. Parte significativa do crescimento dos países emergentes nas últimas décadas se deu pela migração da produção oriunda de países desenvolvidos, o chamado “outsourcing”. Buscando custos de mão-de-obra mais baixos, ambiente regulatório mais favorável e incentivos, muitas empresas fecharam ou reduziram atividades nas economias avançadas e investiram em países como os Tigres Asiáticos, Índia, China, México e Brasil, entre outros. Ficava impossível competir com salários chineses de US$ 60 mensais, por exemplo. Hoje, as empresas que produzem em solo norte-americano, canadense, europeu ou japonês precisam se reinventar, trabalhar com alta tecnologia, alto valor agregado ou serviços diferenciados para reduzir o peso dos custos inerentemente mais altos e recompensar o uso de mão-de-obra qualificada.

Essa recente apreciação do real e a contínua melhoria da distribuição de renda, reduzindo o número de integrantes das classes D/E e aumentando a classe média, parecem colocar o Brasil a meio caminho entre o paraíso do baixo custo verificado em países em desenvolvimento e a sofisticação tecnológica do então primeiro mundo.

Talvez haja algum exagero nessa afirmação; afinal, estamos longe, ainda, de ter renda per capita próxima dos países desenvolvidos. Mas estamos também bem longe de China, Índia e companhia. Em 2008 nosso PIB nominal per capita ficou pouco acima de US$ 10.000 (na 45ª posição); o da China, US$ 1.411; o da Índia, US$ 1.068. No bloco dos desenvolvidos, a Nova Zelândia teve PIB per capita nominal de US$ 30.000, os Estados Unidos, de US$ 47.000 e a Noruega, de US$ 81.000.

O que isso tem a ver com o leite? Depois de 2003, quando o risco-Lula atingiu seu ponto máximo e o dólar chegou a valor quase R$ 4,00, temos verificado uma apreciação da moeda brasileira, em grau superior à maior parte das moedas. Com isso, a competitividade do leite brasileiro vem sendo corroída, atingindo seu ponto máximo nesse exato momento, em que o real valorizado encontrou preços muito baixos para o leite no mercado internacional. No ano passado, o real valeu menos de R$ 2,00, mas o mercado internacional remunerava o leite a US$ 4.000, US$ 4.500. Ainda dava para brigar.

Vale lembrar que, ao ranquearmos nossa competitividade relativa em diversas cadeias do agronegócio, o leite não é exatamente nosso produto mais competitivo. Carne bovina, soja e etanol, por exemplo, aguentam conjuntura externa mais desfavorável do que o leite aguenta.

E há dados mostrando isso. No levantamento anual do IFCN, que compara dados de custos de produção em fazendas localizadas em diversos países utilizando a mesma metodologia de custos, nossa posição em 2007 não foi muito confortável (tabela 1). Estamos na terceira faixa de custos, de um total de cinco. E, para 2008, a tendência é piorar.

A pergunta que se faz é: pois bem, se o Brasil está entrando em uma nova fase realmente, se começa a ser visto como economia segura, se não disputa mais recursos, como disse Octávio de Barros, será que teremos custos mais elevados a ponto de dificultar nossa expansão no mercado internacional de lácteos, considerando ainda que não temos as mesmas vantagens comparativas inatas que outras cadeias do agronegócio têm?

Analisando hoje (veja gráfico abaixo), nossos preços de leite estão cada vez mais próximos dos preços norte-americanos e mais distantes dos preços sul-americanos e neozelandeses. No caso argentino, por exemplo, a desvalorização do peso, refletindo a situação econômica complicada do país vizinho, traz competitividade para o leite. A Conaprole, principal cooperativa uruguaia, anunciou preços de US$ 0,22/litro. Nós já estamos acima dos US$ 0,33/litro.

Gráfico 1. Preços do leite ao produtor (obs: sem correção para o teor de sólidos).

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Há, claro, algumas ressalvas. Primeiro, falar em custo médio de produção no Brasil é complicado. A variação em uma mesma região é grande e superior à variação entre regiões. René Machado, da DPA, apresentou dados no Interleite Sul 2009, em Chapecó, mostrando que os custos variaram de R$ 0,45 a quase R$ 1,00 por litro, sendo esse espectro semelhante em todas as regiões estudadas. Provavelmente, se cada produtor desses fosse colocado no quadro acima, teríamos ampla distribuição, indo dos mais competitivos aos menos competitivos.

Segundo, nem todos os países terão condições para aumentar a produção, coisa que o Brasil possui, e de sobra. Nova Zelândia e Austrália são dois exemplos claros: não basta ser competitivo; é preciso ter condições (área, água) para produzir, o que estes dois países não têm, ao menos em grande volume.

Terceiro, é possível que a situação atual do mercado externo seja transitória. Em 2010, com alguma retomada do crescimento mundial e com o desestímulo na oferta, é esperada uma recuperação de preços para os lácteos. Esse aspecto, aliado ao segundo item, coloca novamente o Brasil na briga. Mas, de qualquer forma, é desconfortável ter uma posição intermediária na tabela de competitividade, dependendo de fatores “extra-campo” para fortalecer sua presença no mercado externo.

Se tudo isso for verdade, nossa posição no mercado externo precisa ser revista. De um lado, temos de identificar os produtores e sistemas mais competitivos e buscar na expansão desses modelos a competitividade antes garantida pela nossa fragilidade econômica, que desvalorizava a moeda. De outro, teremos de agregar valor. Afinal, há a hipótese de não sermos o grande abastecedor mundial de commodities lácteas produzidas a baixo custo. O desafio, nesse caso, seria muito maior.

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