Com o poder de compra achatado pela crise gerada pela pandemia do coronavírus, as famílias colocaram a compra de produtos lácteos em segundo plano no início do ano. Sinais como a ampliação da vacinação e a volta do auxílio emergencial devem dar o empurrão para a retomada do consumo que deve ter início ainda em 2021; mercado precisa estar atento a novas possibilidades, como a própria exportação, sinaliza economista
O rebote da segunda onda do coronavírus atingiu em cheio o mercado de lácteos no Rio Grande do Sul. Com altos estoques e sem o consumo das famílias, que acabou reduzido por conta das restrições da pandemia, a indústria láctea espera por uma reação do mercado. Como o consumo de derivados de leite é uma ação que está intimamente ligada ao poder de compra das famílias, a expectativa agora é para dias melhores, a partir do segundo semestre, evitando que o ano de 2021 seja perdido.
Para o presidente da Associação das Pequenas e Médias Indústrias de Laticínio do Rio Grande do Sul (Apil), Délcio Giacomini, o assunto acaba sendo até repetitivo. Após um ano de estreiteza no consumo e uma desaceleração de vendas, ocorrida em 2020, a comercialização de produtos chegou a retroceder durante no primeiro quadrimestre de 2021. “Está muito difícil fechar cargas para o Sudeste com preço satisfatório. Além disso, não há procura pelos produtos. Onde há potencial de venda ela não está acontecendo. Isto é um péssimo sinal”, avalia.
Giacomini ressalta que o leite spot – que é a venda do produto entre empresas do setor – se manteve estável em abril, limitando a oferta de leite no mercado gaúcho. “Houve uma grande venda internacional de leite em pó, que deve impactar na comercialização do leite spot também. Ainda não sabemos se esta negociação impacta no mercado. O que percebemos, semana após semanas, é uma estagnação do mercado”, disse o presidente da Apil.
O quilo do queijo, comercializado para o Sudeste e Centro-Oeste é outro dilema aos laticínios gaúchos. A comercialização do produto alcançou um patamar muito baixo na concorrência direta com outras regiões do país. Cotado na faixa dos R$ 18,00, nos grandes centros consumidores como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, o alto custo de produção e o preço pago ao produtor criam barreiras para a comercialização no mesmo patamar.
Dificuldade que não é regional
As empresas de laticínio em todas as regiões do estado vêm sentindo o peso da crise com a retração do consumo de lácteos. Na região da Serra gaúcha, o impacto da classificação de bandeira preta – a mais restritiva no modelo de distanciamento controlado do Rio Grande do Sul – impactou de forma direta no consumo. Segundo Daniel Cichelero, da Granja Cichelero, o consumo segue retraído, por conta da guerra de preços com os mercados do Sudeste. “Comprar leite por R$ 1,80 o litro e vender queijo por R$ 18,00 o quilo é uma conta que não fecha, todos sabem. A solução deverá, talvez, vir por meio de uma redução do produto no mercado”, sugere. O empresário de Carlos Barbosa conta que a venda de leite spot pode ser uma alternativa às empresas, para que haja uma redução de queijo, valorizando o valor do produto às indústrias.
Humberto Doering Brustolin, da Laticínios Kiformaggio, da região Norte do Estado, revela que a retração no consumo é uma tendência na região. Ele explica que o aumento de estoques tem sido uma estratégia para conseguir equilibrar a produção. “Temos percebido uma redução no número de pedidos, e mesmo sendo o nosso mercado um pouco diferente do resto do Estado, sentimos uma diminuição nas vendas.”
As dificuldades sentidas no meio empresarial refletem-se na própria insatisfação do produtor de leite, que também sente com o aumento dos insumos na propriedade e o valor de venda do leite. A situação é recorrente em todas as regiões do Estado. Para o empresário de Nonoai, uma das alternativas, a profissionalização do mercado – no que se refere à relação de compra e venda entre laticínio e produtor – é um dos fatores que poderia dar mais garantias ao campo, fazendo com que ocorra uma fidelização entre as partes da cadeia produtiva. “Esta é uma questão de profissionalização da produção. A nossa atividade sempre foi vista como a atividade secundária na propriedade, e acabava sendo ficada de lado. A entrada de novas normativas e toda a situação que temos vivido tem filtrado esta produção. Havendo uma garantia do produtor, a empresa pode investir na propriedade para que haja uma melhor organização do setor que vem evoluindo”, ponderou Brustolin.
Na região metropolitana, a concorrência com grandes indústrias e a oferta que estas fazem ao produtor tem sido um tropeço aos laticínios. Rodrigo Staudt, da Laticínios Nova Alemanha, de Ivoti, confirma que o consumo na região mais populosa do Rio Grande do Sul repete o ritmo desacelerado de todo o estado. “A venda de queijo colonial está difícil de ocorrer. Até consultamos outras empresas para ver se os valores estavam muito acima, mas isso não ocorreu”, aponta, ao indicar a falta de renda como a principal justificativa à redução de consumo.
Reduzir a importância do mercado interno
O economista-chefe da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), Antônio da Luz, o consumo de leite e derivados caminha próximo da inflação e do poder de compra dos brasileiros. Os lácteos estão no rol de produtos na “elasticidade de renda”, cujo consumo aumenta quando há mais recursos nos orçamentos familiares e encolhe na hora da dificuldade financeira. “O leite é muito sensível à economia. O consumo está ligado à renda, quando há uma variação negativa de renda, o consumo das famílias diminui e até sessa.”
Com uma projeção de inflação na casa dos 6%, uma das maiores dos últimos anos, a tendência é de menos dinheiro circulando na economia. Da Luz explica que só o crescimento da economia, esperado para o segundo semestre, poderá sinalizar com uma retomada do consumo de lácteos. “Não há histórico de duas décadas perdidas e a tendência é que com a retomada da economia, que se espera com a ampliação da própria vacinação e a abertura de atividades, este crescimento ocorra, a partir do segundo semestre”, projeta o economista.
A alternativa ao mercado, segundo da Luz, é repensar no formato de negócio e aproveitar a abertura do mercado internacional com a classificação de estado livre de febre aftosa sem vacinação. O economista-chefe da Farsul diz que, embora a exportação de leite ou de algum produto derivado ainda não seja uma realidade acessível, as empresas do setor precisam ponderar esta possibilidade como uma meta futura.
“Há sete anos, quando se falava na venda de pecuária de corte para a China, as pessoas não acreditavam nesta possibilidade, que agora torna-se uma realidade, especialmente pela nova classificação. É preciso que se organize a exportação, e que o setor leiteiro considere esta possibilidade”, sugere da Luz. Para o economista, a redução na importância do mercado interno – como ocorre com a soja – que se tornou um grande produto no mundo todo, pode fazer da produção de leite uma atividade mais estável tanto à indústria quanto ao produtor.
Presidente da Câmara Setorial pede união
O presidente da Câmara Setorial do Leite, órgão vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) Ronei Volpi pede união entre o setor produtivo e a indústria. De acordo com ele, é necessária cautela para que a situação na qual se encontra a cadeia produtiva do leite seja superada. Volpi cita a ministra da Agricultura, Tereza Christina, que classificou o contexto atual como a “tempestade perfeita”. “Isto porque de um lado temos os elevados custos de produção e do outro a pressão da indústria pela queda no consumo”, explica.
Volpi que também preside o Conselho Paritário Produtores/Indústrias de Leite do Estado do Paraná (Conseleite) diz que diante do aumento vertiginoso e sem precedentes dos concentrados como o milho e a soja, indústria e propriedade precisam ser realinhadas. “Não adianta ficar reclamando e colocando a culpa e um ou outro. O produtor precisa buscar a sobrevivência, fazer um esforço gerencial cortar custos e eliminar animais improdutivos e a na indústria, é preciso que se faça a mesma coisa”, analisa.
Situação difícil em todo o país
A pesquisadora Vania Di Addario Guimarães da Universidade Federal do Paraná tem dados que mostram que o pagamento das parcelas de R$ 600,00 e R$ 1.200,00, da primeira remessa do auxílio emergencial fizeram com que produtos derivados do leite – como o queijo Tipo Muçarela – disparassem de preço. “De maio a setembro do ano passado, o preço do Muçarela explodiu. O auxílio emergencial do governo deu uma injeção de dinheiro muito importante, especialmente para as camadas de consumidores de menor renda”, destaca.
Assim, segundo ela, “catapultou” junto o valor de vários tipos de lácteos, em um movimento de valorização destes produtos durante boa parte do ano passado. “Até setembro foi um valor, em dezembro outro e em janeiro isto secou. O efeito disso na renda e consumo das famílias foi enorme”, complementa.
Além da análise do Paraná, a professora Vania, que é membro do Conseleite de Rondônia, revela que a elevação dos custos de produção e a redução de consumo é refletida em todo o país. A pesquisadora também acompanha o cenário no Sudeste, em São Paulo, um dos principais mercados consumidores brasileiros e vê o “filme” da dificuldade no campo e no laticínio repetir-se. “A cadeia produtiva do leite como um todo está um cenário difícil, que se repete em todo o Brasil”, diz.
Nas pesquisas feiras pela Universidade Federal do Paraná, após a supervalorização do ano passado houve uma reversão no mercado paranaense. Na comparação entre setembro de 2020 e fevereiro de 2021, a redução no preço do queijo foi de R$ 8,00 por quilo, situação que segundo a pesquisadora causa uma séria dificuldade na indústria do Paraná.
A pesquisadora destaca que a redução de preços – feita pelos laticínios – para impulsionar o consumo no Brasil, durante a segunda e mais grave onda da pandemia, sem o auxílio emergencial não chegou na ponta. “O varejo não repassou esta redução. O papel de ‘leão’ não está com a indústria, está com o varejo que não reduziu os preços”, comenta.