O velho protecionismo que o leite já conhece.

A onda protecionista que parece acometer vários países e setores da economia mundial não poderia deixar de afetar aquele que é o produto mais sensível do agronegócio mundial: o leite. Após 2 anos de aparente mudança de paradigma, um sonhado sinal de novos tempos, a União Europeia volta com seus subsídios à exportação, gerando protestos e resgatando a necessária pauta de combate às distorções. Os Estados Unidos, vivenciando os piores preços de leite desde 1978 e a pior relação de troca em décadas, acionou o mecanismo de aquisição de leite para estocagem e voltará também com o DEIP, o programa de exportações subsidiadas.

O problema se agrava pelos motivos de sempre: é impossível competir com o tesouro da União Europeia e dos Estados Unidos. Dessa forma, os produtores de países em desenvolvimento ou países que estruturalmente não têm subsídios (Nova Zelândia e Austrália), têm de lidar com preços ainda mais baixos em função dessa ajuda artificial que distorce o mercado, o que ocorre por vários motivos.

Primeiro, o subsídio à exportação faz com que a real situação de mercado (oferta e demanda) não seja totalmente assimilada pelos produtores e indústrias exportadoras destes países, que acabam recebendo valores acima dos vigentes no mercado internacional. Com isso, uma benéfica sinalização para redução da produção não acontece, ou pelo menos não na intensidade necessária para que haja uma rápida correção do mercado. Segundo, em um primeiro momento força os preços do mercado internacional mais para baixo ainda, ao viabilizar o escoamento artificial de uma produção que não teria como ser exportada. Terceiro, atrapalha o desenvolvimento da atividade nos países que são competitivos.

Vale dizer que a prática da União Europeia não é ilegal do ponto de vista comercial, de acordo com as normas da OMC. Também, o fato dos subsídios à exportação estarem até então zerados não significava que haviam sido eliminados. Ocorre que, com os preços elevados no mercado internacional, eles simplesmente não eram necessários: a União Europeia poderia exportar mesmo com altos custos de produção, pois o mercado externo remunerava até a ineficiência crônica.

A questão de curto prazo é até que ponto vai haver uma escalada de subsídios a exportação, voltando aos níveis históricos. A questão de fundo é se o projeto de eliminar os subsídios à exportação em 2013 continuará vigente. Pelas reações, fica evidente que o produtor europeu não está preparado para lidar com o fim definitivo da ajuda às exportações, isso sem falar no subsídio direto, dado para cada produtor, que continua firme e forte. O que a Comissária de Agricultura fará se, no momento de eliminar os subsídios definitivamente, como ela mesmo já anunciou que defende, os preços estiverem lá embaixo? Simplesmente deixará os produtores menos eficientes saírem do negócio? É pagar para ver, mas acho pouco provável.

A ajuda oficial aos bancos, sob a ameaça de quebra geral da ordem econômica mundial, é emprestada de forma oportunista para justificar a maior intervenção nos lácteos, historicamente já conhecidos pelo alto grau de apoio na maior parte dos países desenvolvidos. Se os bancos podem receber bilhões, porque os produtores locais também não podem ficar com seu quinhão? Sob a alegação de palavras mágicas em momentos de crise, como “rede de proteção”, “estabilização do mercado interno”, “segurança alimentar”, “garantia de empregos” e “fomento à indústria local”, a aplicação de subsídios volta com uma força que estava esquecida, o que é perigoso tanto para o caminho em direção ao livre comércio e a globalização, como para a própria recuperação da economia mundial. Na crise de 30, nos EUA, medidas protecionistas geraram retaliação e no final dificultaram ainda mais a saída do fundo do poço. Por isso, o “Buy American” incluído no pacote de ajuda dos Estados Unidos é visto com crítica por muita gente.

A revista The Economist, em sua edição de 7 de fevereiro, coloca que o “Nacionalismo Econômico”, que já havia sido enterrado, “ressurge, vindo diretamente do período mais escuro da história moderna, transformando a crise econômica em crise política. A revista vai mais longe: “o comércio encoraja especialização, traz prosperidade. Os mercados globais de capital, com todos os seus defeitos, alocam dinheiro mais eficientemente do que os mercados locais. A cooperação econômica encoraja a confiança e aumenta a segurança. A economia globalizada está sob ameaça”.

A revista ainda alerta que “o comércio internacional deve cair pela primeira vez desde 1982. Os investimentos privados para países emergentes devem cair para US$ 165 bi, de um pico de US$ 929 bi em 2007”. Sobre o “Buy American”, a Economist diz: “haverá retaliação de outros países e, com isso, empregos serão eliminados nas empresas exportadoras. E a mensagem política é a pior possível”. Logicamente, a Economist tem sua visão e sua ideologia, mas o argumento deles é que, em um momento de pânico global, pode-se optar por medidas que piorarão a situação no médio prazo. Gosto muito da frase: “Nunca tome decisões importantes depois de um dia muito bom ou muito ruim”. Talvez essa frase se aplique a esse momento.

Na briga pela justificativa da aplicação de subsídios, os argumentos variam desde os que alegam que, caso os preços fiquem abaixo dos custos, os produtores não têm como sobreviver (curiosamente, por aqui também ocorre isso), sendo os subsídios necessários; até os mais sofisticados, que dizem que os baixos preços no mercado internacional ajudam os consumidores dos países mais pobres, que conseguem comprar lácteos a preços menores. É uma espécie de ajuda humanitária, porém feita em parte com o dinheiro de quem não foi consultado ou que não pode pagar. Sem dúvida, preços mais baixos estimulam a demanda (e desestimulam a oferta), mas se forem mantidos através dos subsídios, o efeito na oferta é mais lento, ou inexistente, como mostrou o próprio excedente estrutural de leite da União Europeia ao longo de décadas de subsídios. Existem também os mais caras-de-pau, que argumentam que, como os preços de ajuda à exportação, bem como os preços internos da Europa, são publicados na imprensa, os países concorrentes podem calcular o valor de suas ofertas!

Há quem diga que os velhos tempos não voltarão. Não há mais espaço para a retomada maciça dos subsídios à exportação. É possível, mas também não se esperava um pacote protecionista com retrocessos do tipo “Buy American” nos EUA. Na dúvida, é preciso vigiar e acionar os mecanismos possíveis para evitar que os efeitos recaiam sobre a produção brasileira. Ou retaliar.

Essa preocupação é real especialmente em um ano em que o Brasil já começa importando quantidades muito grandes de leite, isso em pleno janeiro, mês que costuma apresentar recordes de produção.

O velho protecionismo que o leite já conhece

Marcelo Pereira de Carvalho

Diretor Executivo da AgriPoint, engenheiro agrônomo

Associação das Pequenas e
Médias Indústrias de Laticínios
do Rio Grande do Sul

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